Um dia o jovem senhor viu na televisão reportagem apresentando as condições de vida em Bangladesh. O país asiático é um dos mais pobres do mundo. As crianças deste país, quando entre 7 e 12 anos, trabalham semi-escravizadas em tecelagens artesanais do país, manuseando teares manuais. Trabalham de graça, por acreditarem que o trabalho é a coisa mais certa que podem fazer durante suas infâncias, para que suas vidas de adultos sejam ricas, e possam dar condições dignas para suas famílias. Estas crianças trabalham mais de 12 horas por dia, gratuitamente, e são analfabetas! Isso mesmo, pois nunca estiveram em uma escola. São contratadas pelo tamanho das mãos e...falando sério, são contratadas por serem baratas, eficientes e principalmente, por não reclamarem! Trabalham exploradas, escravizadas desde a menor infância, e não reclamam!
O jovem senhor se espanta com a passividade da sociedade bangladeshiana com aquilo que considera um "absurdo", "ultrajante" e algo que ameaça a "Dignidade da pessoa humana". O senhor levanta de sua poltrona, desliga a TV cedo, pois no dia seguinte vai trabalhar e acordar cedo. Vai de trem e metrô. Reside numa metrópole moderna, cosmopolita com ares provincianos que os estrangeiros acham delicioso; metrópole entre a montanha e o mar, com lindas praias e garotas de biquini. Reside no subúrbio, em bairro cortado por um muro de Berlim chamado TREM. A farmácia mais próxima fica a menos de 50m de sua casa, porém tem que andar 600m ao longo do muro de berlim-trem para subir uma passarela de concreto cujos vergalhões estão expostos por falta de conservação, descer a passarela, e fazer os mesmos 600m voltando, para encontrar a farmácia. Não há passarela perto de sua casa. Há tempos os moradores pedem por uma, sem resposta. Chegaram a fazer um buraco nos muros, para atravessarem rumo outro lado, porém...a companhia de trem o fechou.
Seu trem, pela manhã, não passa cheio. Passa entulhado. No entulho que carrega, estudantes, mulheres cheirosas e novas,mulheres cheirosas e velhas, mulheres comperfumes horríveis, senhores com bafo de cachaça da semana passada, senhores! Pessoas que vão trabalhar e estudar, na cidade entre a montanha e o mar. Pessoas que não moram perto do mar, mas muitas vezes residem em montanhas baixas, chamadas "morros". O trem não obedece lógica, não tem hora de chegar ou de partir, e nunca se sabe se opróximo será o trem mais moderno do mundo, ou um trem saído da primeira revolução industrial inglesa. O trem segue, o avião do trabalhador cria asas, e de tão cheio, se frear, milhares morrem esmagados. Deus protege. Óbvio que quem mora perto do mar na avenida Beira-mar estámais protegido. Ao menos, mais protegido de morrer esmagado no trem.
A cidade é linda, a paisagem é diversificada, e a Vista Chinesa, no alto da Floresta da Tijuca, permitindo avistar construções divinas naturais como o mar, a montanha, as matas, os barracos, a miséria e as balas traçantes durante a noite! De dentro de seu trem, o Cristo Redentor usa coletes, a prova de balas, e muitas vezes aproveita que já está de braços abertos para vender um cortador de unha no trem. É barato, é contrabando, é subemprego, é sabido, e é ignorado por todos. A maior multinacional de alimentos do mundo subcontrata os camelôs proibidos e lhes paga menos ainda. Trabalham vendendo, com sapatos furados, e sem dentes na boca. Caso não venda, pede, e pega uma criança de rua para servir de álibi, sensibilizando a todos no vagão. Tecnologia de marketing direto nascida nas ruas cariocas, aceitando moedinhas de um centavo ou um pedaço de pão. Mas preferindo uma nota de dois reais. Os seguranças da empresa de trem parecem envergonhados com a situação que passam estes camelôs, que são proibidos por lei de estarem ali, e para impedi-los é que se contratam os seguranças, mas a vergonha os força a virar de costas e fingirem que não viram. Pobres coitados dos seguranças.
O sistema de segurança do transporte do senhor é eficientíssimo. Saído diretamente dos programas do Discovery Channel, quando exibem cardumes inteiros fugindo de tubarões famintos. No trem é assim também, pois o povo se expreme, um por dentro do outro, assim nenhum larápio roupa o próximo. Caso algum delinquente resolva por opção deixar parte do corpo para fora do trem lotado por terem fechado as portas sem dar tempo de todos entrarem, os senhores da segurança (de quem) chicoteiam o senhor até que este sinta dor e se meta trem adentro. Recebe chutes, não respira, chega suado. Paga dois reais e cincoenta.
Paga mais dois reais e sessenta de metrô. Ou três e oitenta de "integração". Engraçado, mas sempre imaginou o senhor que integrar fosse tornar dois em um. Sem diferenciação. Sai do trem anárquico e entra no metrô facista. Não sabe qual é o pior. Se a anarquia do trem repleto de pedintes e vendedores, ou o facismo dos imbecis que entram e estacionam nas portas. Mas vai feliz. Caso queira urinar neste ínterim, o fará nas passarelas, pois não há banheiro. Seu sistema de trens e metrô foi privatizado em um contrato que estabelece regra peculiar e engraçada para ele, que não entende a quem a mesma beneficia. A lei diz:
O lucro será do doutor, e o din din pra comprar trem novo será de todo usuário, inclusive do senhor, pago pelo Estado.
O senhor chega ao trabalho, senta-se, cansado, após duas horas dentro de dois infernos metálicos, usurpado e mal tratado, destruído como cidadão e como carioca, e comenta com o amigo: COITADO DO POVO DE BANGLADESH! GRAÇAS A DEUS, NO BRASIL,SOMOS MUITO BEM TRATADOS!
Anos depois, se torna apresentador da Rede Record, ou secretário de transportes ou governador, e chama a quem se revolta com o trem de VAGABUNDOS.
Breno Mendes, um vagabundo
FIKA A DIKA: O choque do oportunismo e da realidade (Texto do Observatório da Imprensa sobre a reportagem de TV que explorou a miséria das crianças bengalesas por IBOPE): http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=545CID002
FIKA A DICA: A foto das "chupetas do trem", a segunda desta postagem, veio de um grande fotógrafo: http://www.flickr.com/photos/claudiolara/sets/1602444/
O jovem senhor se espanta com a passividade da sociedade bangladeshiana com aquilo que considera um "absurdo", "ultrajante" e algo que ameaça a "Dignidade da pessoa humana". O senhor levanta de sua poltrona, desliga a TV cedo, pois no dia seguinte vai trabalhar e acordar cedo. Vai de trem e metrô. Reside numa metrópole moderna, cosmopolita com ares provincianos que os estrangeiros acham delicioso; metrópole entre a montanha e o mar, com lindas praias e garotas de biquini. Reside no subúrbio, em bairro cortado por um muro de Berlim chamado TREM. A farmácia mais próxima fica a menos de 50m de sua casa, porém tem que andar 600m ao longo do muro de berlim-trem para subir uma passarela de concreto cujos vergalhões estão expostos por falta de conservação, descer a passarela, e fazer os mesmos 600m voltando, para encontrar a farmácia. Não há passarela perto de sua casa. Há tempos os moradores pedem por uma, sem resposta. Chegaram a fazer um buraco nos muros, para atravessarem rumo outro lado, porém...a companhia de trem o fechou.
Seu trem, pela manhã, não passa cheio. Passa entulhado. No entulho que carrega, estudantes, mulheres cheirosas e novas,mulheres cheirosas e velhas, mulheres comperfumes horríveis, senhores com bafo de cachaça da semana passada, senhores! Pessoas que vão trabalhar e estudar, na cidade entre a montanha e o mar. Pessoas que não moram perto do mar, mas muitas vezes residem em montanhas baixas, chamadas "morros". O trem não obedece lógica, não tem hora de chegar ou de partir, e nunca se sabe se opróximo será o trem mais moderno do mundo, ou um trem saído da primeira revolução industrial inglesa. O trem segue, o avião do trabalhador cria asas, e de tão cheio, se frear, milhares morrem esmagados. Deus protege. Óbvio que quem mora perto do mar na avenida Beira-mar estámais protegido. Ao menos, mais protegido de morrer esmagado no trem.
A cidade é linda, a paisagem é diversificada, e a Vista Chinesa, no alto da Floresta da Tijuca, permitindo avistar construções divinas naturais como o mar, a montanha, as matas, os barracos, a miséria e as balas traçantes durante a noite! De dentro de seu trem, o Cristo Redentor usa coletes, a prova de balas, e muitas vezes aproveita que já está de braços abertos para vender um cortador de unha no trem. É barato, é contrabando, é subemprego, é sabido, e é ignorado por todos. A maior multinacional de alimentos do mundo subcontrata os camelôs proibidos e lhes paga menos ainda. Trabalham vendendo, com sapatos furados, e sem dentes na boca. Caso não venda, pede, e pega uma criança de rua para servir de álibi, sensibilizando a todos no vagão. Tecnologia de marketing direto nascida nas ruas cariocas, aceitando moedinhas de um centavo ou um pedaço de pão. Mas preferindo uma nota de dois reais. Os seguranças da empresa de trem parecem envergonhados com a situação que passam estes camelôs, que são proibidos por lei de estarem ali, e para impedi-los é que se contratam os seguranças, mas a vergonha os força a virar de costas e fingirem que não viram. Pobres coitados dos seguranças.
O sistema de segurança do transporte do senhor é eficientíssimo. Saído diretamente dos programas do Discovery Channel, quando exibem cardumes inteiros fugindo de tubarões famintos. No trem é assim também, pois o povo se expreme, um por dentro do outro, assim nenhum larápio roupa o próximo. Caso algum delinquente resolva por opção deixar parte do corpo para fora do trem lotado por terem fechado as portas sem dar tempo de todos entrarem, os senhores da segurança (de quem) chicoteiam o senhor até que este sinta dor e se meta trem adentro. Recebe chutes, não respira, chega suado. Paga dois reais e cincoenta.
Paga mais dois reais e sessenta de metrô. Ou três e oitenta de "integração". Engraçado, mas sempre imaginou o senhor que integrar fosse tornar dois em um. Sem diferenciação. Sai do trem anárquico e entra no metrô facista. Não sabe qual é o pior. Se a anarquia do trem repleto de pedintes e vendedores, ou o facismo dos imbecis que entram e estacionam nas portas. Mas vai feliz. Caso queira urinar neste ínterim, o fará nas passarelas, pois não há banheiro. Seu sistema de trens e metrô foi privatizado em um contrato que estabelece regra peculiar e engraçada para ele, que não entende a quem a mesma beneficia. A lei diz:
O lucro será do doutor, e o din din pra comprar trem novo será de todo usuário, inclusive do senhor, pago pelo Estado.
O senhor chega ao trabalho, senta-se, cansado, após duas horas dentro de dois infernos metálicos, usurpado e mal tratado, destruído como cidadão e como carioca, e comenta com o amigo: COITADO DO POVO DE BANGLADESH! GRAÇAS A DEUS, NO BRASIL,SOMOS MUITO BEM TRATADOS!
Anos depois, se torna apresentador da Rede Record, ou secretário de transportes ou governador, e chama a quem se revolta com o trem de VAGABUNDOS.
Breno Mendes, um vagabundo
FIKA A DIKA: O choque do oportunismo e da realidade (Texto do Observatório da Imprensa sobre a reportagem de TV que explorou a miséria das crianças bengalesas por IBOPE): http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=545CID002
FIKA A DICA: A foto das "chupetas do trem", a segunda desta postagem, veio de um grande fotógrafo: http://www.flickr.com/photos/claudiolara/sets/1602444/
3 comentários:
Muito bom o seu texto. Principalmente pra mim que vivo meio por fora dessa realidade da Super Via porque não pego trem. Você me fez entender um pouco melhor o que está acontecendo.
beijos
mandou bem!
Vc escreve perfeitamente bem e com o sentido de revolta, verdade e teor de mudança de um pensador .
Não só um pensador
tbm um executor, pois seus textos, seus trabalhos nos fazem pensar
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